domingo, 29 de abril de 2012


Descartes e o inicio da Filosofia moderna


O assunto hoje é a filosofia "moderna".  Suponho, que a filosofia moderna tem início com Descartes, e que sua mais significativa manifestação recente deve ser encontrada nos escritos de Wittgenstein. Espero embasar tais suposições, mas meu principal objetivo será apresentar a história da filosofia ocidental moderna de modo tão breve quanto possível. Desejo que o teor seja inteligível para os que não possuem conhecimento especializado de filosofia analítica contemporânea. Infelizmente, é muito difícil descrever brevemente a natureza da filosofia; a única satisfação que um autor pode auferir da tentativa de fazê-lo está em saber que uma resposta à questão "que é filosofia?" só pode parecer persuasiva na medida em que seja breve. Quanto mais se pondera acerca das restrições que qualquer resposta dada deve apresentar, mais se é impelido à conclusão de que tal questão constitui em si mesma o principal objeto da pesquisa filosófica. É claro que a descrição que agora faço da natureza da filosofia refletirá meu ponto de vista filosófico particular, e, aos olhos do leitor, seu mérito deve residir no fato de ter-se recomendado a um filósofo que é também seu contemporâneo.
A natureza da filosofia pode ser apreendida mediante dois contrastes : com a ciência, por um lado, e com a teologia, por outro. Comumente, a ciência constitui o domínio da investigação empírica; ela origina-se da tentativa de compreender o mundo como o percebemos, predizer e explicar eventos observáveis e formular as "leis da natureza" (caso existam), consoante as quais o curso da experiência humana deve ser explicado. Qualquer ciência produzirá uma quantidade de questões que ultrapassam o alcance de seus próprios métodos de pesquisa e que, por conseguinte, ela não poderá resolver. Consideremos a questão, extraída de algum episódio considerado notável: "Que causou isso?" Provavelmente, uma resposta científica deve ser formulada em termos de eventos e condições precedentes, juntamente com certas leis ou hipóteses que articulem o evento a ser explicado com os eventos que o explicam. Entretanto, poderemos fazer a mesma pergunta com relação a esses outros eventos e, caso se respondesse do mesmo modo, pelo menos potencialmente, as séries causais poderiam prolongar-se eternamente, regredindo ao infinito. Percebendo tal possibilidade, poderíamos ser levados a perguntar: "Que causou a existência das séries?", ou, ainda mais abstratamente, "Por que devem existir eventos?"; ou seja, não apenas por que deveria haver este ou aquele evento, mas por que existe alguma coisa? Naturalmente, a investigação científica que nos leva do que é dado ao que o explica pressupõe a existência de coisas. Conseqüentemente, ela não pode resolver essa questão mais abstrata e intrincada. Trata-se de uma questão que parece ultrapassar a pesquisa empírica e, não obstante, simultaneamente dela provir de modo natural. A própria ciência não proporcionará a resposta, mas não parece absurdo sugerir que podehaver uma resposta.
Constantemente, descobrimos que a ciência produz questões que ultrapassam sua própria capacidade de resolvê-las. Têm-se chamado tais questões de metafísicas; elas constituem uma parte distinta e inevitável do objeto da filosofia. Ora, considerando 0 problema metafísico particular que mencionei, poderíamos recorrer a um sistema teológico autoritário. Poderíamos encontrar sua resposta ao invocar Deus como causa primeira e meta final de todas as coisas. Porém, se tal invocação se basear somente na fé, ela não poderá pretender outra autoridade racional além da que se pode atribuir à revelação. Quem recorre à fé para solucionar tal problema, e não questiona a validade de seu proceder, possui, de certo modo, uma filosofia. Tal pessoa apoia sua alegação numa doutrina metafísica, mas expressa essa doutrina dogmaticamente, ou seja, tal doutrina não é, para ela, nem a conclusão de um argumento embasado nem o resultado de especulação metafísica. É simplesmente uma idéia aceita, que tem o mérito intelectual de produzir respostas a quebra-cabeças metafísicos, mas com a peculiar desvantagem de não acrescentar qualquer autoridade àquelas respostas que não esteja contida na suposição dogmática original.
Qualquer tentativa de proporcionar uma base racional para a teologia constituir-se-á, pela mesma razão de que a teologia provê respostas para questões metafísicas, numa forma de pensamento filosófico. Portanto, não surpreende o fato de que, embora a teologia isoladamente não seja filosofia, a questão da possibilidade da teologia tem sido, e até certo ponto ainda e, a principal questão filosófica.
Além das questões metafísicas do tipo a que me referi, existem outras questões que têm algum direito prima facie a ser consideradas filosóficas. Particularmente, existem questões de método, exemplificadas pelos estudos de epistemologia (teoria do conhecimento) e de lógica. Assim como a investigação científica pode chegar ao ponto de se tornar metafísica, seu próprio método pode ser questionado mediante repetidas indagações acerca dos fundamentos de cada asserção particular. Desse modo, a ciência dá origem inevitavelmente aos estudos de lógica e de epistemologia e, caso nos inclinemos a dizer que as conclusões de tais estudos são vãs ou sem sentido, ou que suas questões são irrespondíveis, tratar-se-á de uma opinião filosófica, tão carente de argumentação como as alternativas menos céticas.
Aos estudos metafísicos, lógicos e epistemológicos devemos acrescentar os éticos e de filosofia política, visto que, também aqui, tão logo somos levados a investigar a base de nosso pensamento, somos impelidos a níveis de abstração em que nenhuma investigação empírica pode proporcionar resposta satisfatória. Por exemplo, embora concebamos que um comprometimento com um princípio moral que proíba o roubo envolva o ato de não roubar em qualquer ocasião particular, também reconhecemos que o caso de um homem esfaimado que rouba um pão de alguém que não precise deve ser considerado diferentemente do de um homem rico que rouba o objeto mais precioso de alguém. Mas por que consideramos tais ações de modo diferente como reconciliamos tal atitude com a fidelidade ao principio original e como justificamos o próprio princípio? Todas essas questões conduzem-nos a regiões distintamente filosóficas; os âmbitos da moralidade, da lei e da política ficarão para trás, e nos veremos buscando abstrações, amiúde pouco convencidos de que elas sejam suficientes para sustentar um sistema de crenças, e novamente desejosos de nos refugiar em dogmas teológicos.
Então, o que distingue o pensamento filosófico? As questões formuladas pelos filósofos têm duas características peculiares, a partir das quais poderíamos começar a caracterizá-las: a preocupação com a verdade. No que tange à abstração, quero, em linhas gerais, dizer que as questões filosóficas surgem no fim de todas as outras pesquisas, quando as questões acerca de coisas particulares, eventos e dificuldades práticas são solucionadas de acordo com os métodos disponíveis, e quando esses próprios métodos, ou alguma doutrina metafísica que sua aplicação parece pressupor, são questionados. Assim sendo, os problemas filosóficos e os sistemas destinados a resolvê-los são formulados em termos que tendem a se referir aos domínios da possibilidade e da necessidade e não ao da realidade, ou seja, ao que poderia e ao que deveria ser e não ao que é.
A segunda característica - a preocupação com a verdade - poderia parecer óbvia demais para que valesse a pena mencioná-la. Porém, é facilmente esquecida, e quando tal acontece a filosofia corre o risco de degenerar em retórica. As questões formuladas pela filosofia podem ser peculiares pelo fato de não terem resposta; e alguns filósofos têm-se inclinado a pensar assim. Entretanto, elas, não obstante, são questões, de modo que qualquer resposta deve ser avaliada pelas razões alegadas para se caracterizá-la como verdadeira ou falsa. Se não existem respostas, então todas as respostas putativas são falsas. Mas se propusermos uma resposta, deveremos apresentar razões para que ela seja crível.
Ao longo das páginas deste livro, deparar-nos-emos com vários autores e escolas de pensamento que se têm baseado no que se poderia chamar de "metafilosofia", isto é, em alguma teoria que se refira à natureza do pensamento filosófico, destinada a explicar como pode haver uma disciplina intelectual totalmente abstrata e, não obstante, dedicada à busca da verdade. Tais metafilosofias tendem a ser de um ou de outro tipo, conforme sustentem ser a especulação ou a análise a meta do pensamento filosófico.
Diz-se - seguindo a tradição de Platão e Pitágoras - que a filosofia adquire seu caráter abstrato porque consiste no estudo especulativo de coisas abstratas, particularmente de certos objetos ou certos mundos, inacessíveis à experiência. Tais filosofias devem, provavelmente, denegrir a investigação empírica, alegando que ela só revela meias verdades, já que apenas estuda as aparências, ao passo que a filosofia especulativa possui a superior virtude de alcançar o domínio da necessidade onde o verdadeiro conteúdo do mundo (ou o conteúdo do verdadeiro mundo) é revelado. Outros julgam que a filosofia alcança a abstração não porque especule acerca de algum outro mundo mais elevado, mas porque se ocupa da tarefa mais mundana da crítica intelectual, ao estudar os métodos e metas de nossas formas específicas de pensamento, a fim de atingir conclusões concernentes aos seus limites e validade. Uma abstração é apenas abstração do - a partir do - particular; não é abstração concernente a algo mais, e menos ainda a algum outro domínio de ser. Quanto à busca da verdade, que é imediatamente explicada como uma extensão do desejo de determinar o que se pode conhecer e o que se pode provar - a verdade filosófica é simplesmente a verdade acerca dos limites do entendimento humano.
Essa filosofia analítica ou crítica, expressa de modo mais notável nos escritos de Kant, tem também dominado a filosofia anglo-saxônica ao longo deste século, ao assumir a forma especial de análise "conceitual" ou "lingüística". Todavia, a história do assunto sugere que, em termos de filosofia, a análise, por mais consideração que se tenha por ela, sempre acarreta o desejo de síntese e especulação. Por mais exígua que uma filosofia particular possa parecer à primeira vista, por mais que pareça mero jogo verbal ou variação lógica, muito provavelmente ela conduzirá, mediante passos persuasivos, a conclusões cujas implicações metafísicas são tão inalcançáveis quanto as de qualquer dos grandes sistemas especulativos.
Aleguei ser uma característica essencial do pensamento filosófico o fato de que ele deve ter como meta a verdade. Porém ante a desconcertante variedade das conclusões, as contradições dos métodos e a obscuridade das premissas dos filósofos, o leitor comum pode muito bem achar que tal meta é irrealizável ou na melhor das hipóteses, uma pia esperança e não uma intenção séria. Certamente, ele dirá que, se existe algo como a pesquisa filosófica, que visa a verdade e a produz, então deveria haver progresso filosófico, premissas aceitas e conclusões estabelecidas; em suma, o tipo de constante tendência a cair em desuso por parte de sucessivos sistemas que observamos na ciência natural, quando novos resultados são estabelecidos e se subvertem os antigos. Contudo, não é isso que constatamos; as obras de Platão e Aristóteles são agora estudadas tão seriamente como nunca foram, e é tarefa de um filósofo moderno, assim como era para os pensadores contemporâneos daqueles filósofos, estar familiarizado com seus argumentos. Um cientista, ao contrário, embora se possa interessar pela história do assunto que estuda, pode muitas vezes ignorá-la impunemente, o que acontece com freqüência. Um físico moderno que nunca ouviu falar de Arquimedes pode, não obstante, conhecer completamente as conclusões estabelecidas em sua disciplina.
Responder-se-ia a tal ceticismo argumentando que existe progresso em filosofia, mas que o assunto é particularmente difícil. Encontra-se no limite do, entendimento humano; portanto, o seu progresso é lento. Também se responderia argumentando que a natureza do assunto é tal que cada tentativa constitui um novo começo, que pode questionar tudo, e só raramente alcançar conclusões que ainda não foram enunciadas de alguma outra forma, expressas na linguagem de algum outro sistema. Aqui, será proveitoso contrastar a filosofia com a ciência e a literatura. Como sugeri, um cientista pode, impunemente, conhecer apenas a história recente de sua disciplina e, não obstante, ser um cientista competente. De modo contrário, quem apenas compreende de forma inadequada a física (o sistema físico atualmente aceito como verdadeiro) pode, todavia, mostrar-se um competente historiador do assunto, capaz de investigar e expor as pressuposições intelectuais ou a importância história de uma hipótese ou forma de pensamento há muito obsoleta. (Vemos assim que a ciência e a história da ciência estão começando a ser disciplinas acadêmicas separáveis, com pouca ou nenhuma sobreposição em matéria de questões ou resultados.)
Entretanto, quando nos voltamos para a literatura, encontramos um estado de coisas completamente diferente. Em primeiro lugar, é improvável sugerir que há uma tendência inata da literatura a progredir, visto que não se pode descrever a direção em que ela se desenvolve. A ciência, que progride na direção da verdade, se constrói sobre o já estabelecido, tendo um direito inalienável de subverter e demolir os mais ingênuos, satisfatórios e belos de seus sistemas estabelecidos. Desse modo, Copérnico e Galileu subverteram as cosmologias ptolomaica e aristotélica. Portanto, alguém que nunca tenha ouvido falar de Ptolomeu ou até mesmo de Aristóteles ainda assim poderá tornar-se o maior especialista vivo no assunto. A literatura, ao contrário, tem seus pontos altos e baixos, mas nada semelhante a uma progressão necessária de um ponto para outro. A perspectiva de tal paisagem mudará com o tempo: o que se afigurava grandioso decrescerá com o passar dos anos e (mais raramente) o que agora parece insignificantes parecerá grande visto à distância. Mas não há progresso além de Homero ou Shakespeare, nem expectação necessária de que alguém por mais talentoso que seja, que tenha lido toda a literatura produzida antes dele deva, por conseguinte, estar em condições de escrever tão bem ou melhor, ou até mesmo de compreender o que leu. Duas importantes características do conhecimento literário estão ligadas a essa evidente falta de direção determinada: primeiramente, é impossível dedicarmo-nos à história da literatura sem uma compreensão plena da literatura, e, em segundo lugar, não podemos admitir que se adquira esse tipo de compreensão apenas com o estudo de obras contemporâneas. Aqui, há uma interpenetração e uma interdependência entre história e crítica; porém, no que tange à ciência, elas são independentes.
A filosofia parece ocupar algum lugar intermediário entre a ciência e a literatura. Por um lado, é possível, como o fez Wittgenstein, focalizá-la com um espírito completamente a-histórico, ignorando as realizações de filósofos anteriores e apresentando os problemas filosóficos sem ostentar uma relação autoconfessada com a tradição do assunto. Embora grande parte da filosofia contemporânea seja desse tipo a-histórico, geralmente não é pior por isso. Os filósofos têm sido bem-sucedidos ao isolar uma série de questões às quais se têm dirigido, cada vez mais preocupados com o que se tem pensado mais recentemente e com a intenção de aperfeiçoar tal pensamento. A imagem é produzida por "resultados estabelecidos" e por um movimento que, por ser progressivo, pode chegar a ser a-histórico. Porém, com um pouco de habilidade, geralmente se pode descobrir, dissimuladas nos escritos de algum filósofo histórico, não só a mais recente opinião aceita como alguma réplica surpreendente dos argumentos empregados em seu favor. A descoberta de que os mais recentes resultados foram antecipados por Aristóteles, por exemplo, ocorreu muitas vezes no decorrer da história da filosofia, e sempre de modo a levar ao reconhecimento de novos argumentos, novas dificuldades e novas objeções que envolvem a opinião adotada, seja com a teologia escolástica de Santo Tomás de Aquino, a metafísica romântica de Hegel ou a estéril análise da escola lingüística contemporânea.
Ademais, é indubitável que focalizar as obras de historiadores da filosofia sem se adquirir alguma competência filosófica independente conduz ao equívoco. Um enfoque puramente "histórico" deturpa tanto a filosofia de Descartes ou de Leibniz quanto as peças de Shakespeare ou a poesia de Dante. Compreender o pensamento desses filósofos é enfrentar os problemas aos quais se dedicaram, problemas que geralmente ainda constituem o objeto da pesquisa filosófica. Parece quase pré-condição para nos introduzirmos ao pensamento dos filósofos tradicionais que não consideremos "fechadas" as questões que eles discutiram, ou superados seus resultados. Na medida em que os consideremos como tal, desalojamo-nos de qualquer lugar central na história do assunto. (Assim como um poeta se inspira no corpo de nossa literatura apesar de suas preocupações lhe parecerem estritamente pessoais.) Adotando-se tal concepção, logo se concluiria que dois filósofos podem chegar a resultados semelhantes, mas apresentá-los de modo tão diferente a ponto de merecerem o mesmo lugar na história da filosofia. Assim é com Guilherme de Ockham e Hume, com Hegel e Sartre. Deparar-nos-emos repetidas vezes com tal fenômeno neste livro.
Estamos agora em condições de estabelecer uma distinção preliminar, da maior importância, entre a história da filosofia e a "história das idéias". Uma idéia pode ter uma história complexa e interessante, mesmo quando se afigura óbvio para qualquer filósofo que ela não pode ter poder persuasivo. (Consideremos a idéia de que há mais de um Deus.) Outrossim, uma idéia pode possuir sério conteúdo filosófico, mas dever sua influência não à sua verdade, mas ao desejo que os homens sentem de acreditar nela. (Consideremos a idéia de redenção.) A fim de participar da história da filosofia, uma idéia deve possuir uma significância filosófica intrínseca, capaz de despertar o espírito de pesquisa de um contemporâneo e afigurar-se como algo que poderia ser sustentável e até mesmo verdadeiro. Para participar da história das idéias, basta que uma idéia tenha influenciado historicamente a vida dos homens. A história da filosofia deve considerar uma idéia em função dos argumentos que a sustentam, mas ocorre de desviar sua atenção, atentando para suas manifestações mais vulgares ou para suas origens em concepções que não encerram valor filosófico. Certamente, o historiador da filosofia tem o direito de estudar a ética kantiana e ignorar a obra de Lutero intitulada Sujeição da Vontade, * embora, do ponto de vista histórico, a primeira fosse impossível se a segunda não tivesse sido escrita. Reconhecer tais pormenores é reconhecer que, em matéria de história da filosofia, o melhor método pode discrepar da prática do historiador das idéias. Talvez seja necessário que o filósofo tire uma idéia do contexto em que foi concebida para reexpressá-la em linguagem direta e acessível, simplesmente com o intuito de avaliar sua verdade. Assim sendo a história da filosofia se torna uma disciplina filosófica, e não histórica.
Por conseguinte, se o historiador da filosofia se preocupa com influências, tais influências derivarão do caráter irrefutável das idéias e não de seu apelo emocional ou prático. Assim, a influência de Hume e Kant será da maior importância filosófica, ao passo que a influência de Voltaire e Diderot será relativamente pequena. Para o historiador das idéias esses quatro pensadores fazem parte do grande movimento singular denominado "Iluminismo", e, no que se refere à vida dos homens, onde o que importa é o poder de motivação e não a irrefutabilidade, suas respectivas influências se entrelaçam inextricavelmente.
Pode suceder que um historiador das idéias e um historiador da filosofia estudem o mesmo sistema de pensamento; mas fá-lo-ão com interesses contraditórios, o que exigirá uma aptidão intelectual diferente. A influência histórica de 0 contrato social de Rousseau foi enorme. Para se estudar tal influência não é necessária uma melhor compreensão filosófica da obra do que a que tiveram os que foram mais profundamente influenciados por ela - homens de letras, déspotas esclarecidos e agitadores populares. Todavia, a questão de seu interesse filosófica é independente e, para focalizar a obra a partir da concepção filosófica, deve-se compreender e apresentar suas conclusões com a melhor intenção de determinar sua verdade. Para fazê-lo, precisaremos demonstrar aptidões de tipo diferente das dos homens mais fortemente influenciados pela doutrina. Podemos realmente chegar à conclusão (não nesse caso, mas certamente no de Os direitos do homem, de Tom Paine) de que uma obra filosófica de imensa importância histórica não desfruta de lugar significativo na história da filosofia.
Ao ler as páginas seguintes, o leitor deve ter em mente essa distinção entre a história da filosofia e a história das idéias e reconhecer que a história que ora esboço tanto produz como é produzida pelo estado atual do entendimento filosófico. Meu método, porém, não será expor detalhadamente os argumentos dos filósofos, mas delinear as principais conclusões, sua importância filosófica e os tipos de consideração que levaram seus autores a adotá-las.
In Scruton, R. (1981): Introdução à Filosofia Moderna, Rio de Janeiro: Zahar, pgs. 11-19.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Porque Filosofia ! ?


SEÇÃO INTRODUTÓRIA: A ORIGEM DO TERMO FILOSOFIA


Uma definição precisa do termo "filosofia" é impraticável. Tentar formulá-la poderia, ao menos de início, gerar equívocos. Com alguma espirituosidade, alguém poderia defini-la como "tudo e nada, tudo ou nada...". Melhor dizendo, a filosofia difere das ciências especiais na medida em que procura oferecer uma imagem do pensamento humano - ou mesmo da realidade, até onde se admite que isso possa ser feito -- como um todo. Contudo, na prática, o conteúdo de informação real que a filosofia acrescenta às ciências especiais tende a desvanecer-se até parecer não deixar vestígios. Acreditamos que esse desvanecimento seja enganoso. Mas devemos admitir que até aqui a filosofia não tem conseguido realizar suas grandes pretensões. Tampouco tem logrado êxito em produzir um corpo de conhecimentos consensual comparável ao elaborado pelas diversas ciências. Isso se deve em parte, embora não integralmente, ao fato de que, quando obtemos conhecimento verdadeiro a respeito de determinada questão situamos essa questão como pertencente à ciência e não à filosofia. 0 termo "filósofo" significava originariamente "amante da sabedoria", tendo surgido com a famosa réplica de Pitágoras aos que o chamavam de "sábio". Insistia Pitágoras em que sua sabedoria consistia unicamente em reconhecer sua ignorância, não devendo portanto ser chamado de "sábio", mas apenas de "amante da sabedoria". Nessa acepção, "sabedoria" não se restringia a qualquer dos domínios particulares do pensamento e, de modo similar, "filosofia" era usualmente entendida como incluindo o que hoje denominamos "ciência". Esse uso sobrevive ainda hoje em expressões como "filosofia natural". Na medida em que uma grande produção de conhecimento especializado em um dado campo ia sendo conquistada, o estudo desse campo se desprendia da filosofia, passando a constituir uma disciplina independente. As últimas ciências que assim evoluíram foram a psicologia e a sociologia. Dessa forma, poderíamos falar de uma tendência à contração da esfera da filosofia na própria medida em que o conhecimento se expande. Recusamo-nos a considerar filosóficas as questões cujas respostas podem ser dadas empiricamente. Não desejamos com isso sugerir que a filosofia poderá acabar sendo reduzida ao nada. Os conceitos fundamentais das ciências, da figuração geral da experiência humana e da realidade (na medida em que formamos crenças justificadas a seu respeito) permanecem no âmbito da filosofia, visto que, por sua própria natureza, não podem ser determinados pelos métodos das ciências especiais. É sem dúvida desencorajador que os filósofos não tenham logrado maior concordância com respeito a esses assuntos, mas não devemos concluir que a inexistência de um resultado por todos reconhecido signifique que esforços foram realizados em vão. Dois filósofos que discordem entre si podem estar contribuindo com algo de inestimável valor, embora ambos não estejam em condição de escapar totalmente ao erro: suas abordagens rivais podem ser consideradas mutuamente complementares. O fato de filósofos distintos necessitarem dessa mútua complementação torna evidente que o ato de filosofar não é unicamente um processo individual, mas também um processo que possui uma contrapartida social. Um dos casos em que a divisão do trabalho filosófico se torna bastante proveitosa consiste na circunstância de que pessoas distintas usualmente enfatizam aspectos diferentes de uma mesma questão. Contudo, boa parte da filosofia volta-se mais para o modo pelo qual conhecemos as coisas do que propriamente para as coisas que conhecemos, sendo essa uma segunda razão pela qual a filosofia parece carecer de conteúdo. No entanto, discussões a respeito de um critério definitivo de verdade podem determinar, na medida em que recomendam a aplicação de um dado critério, quais as proposições que na prática deliberamos serem verdadeiras. As discussões filosóficas da teoria do conhecimento têm exercido, ainda que de modo indireto, importante efeito sobre as ciências.

UTILIZAÇÃO DA FILOSOFIA
Há uma questão que muita gente formula de imediato quando ouve falar de filosofia: qual a utilidade da filosofia? Não há certamente expectativa alguma de que ela contribua para a produção de riqueza material. Contudo, a menos que suponhamos que a riqueza material seja a única coisa de valor, a incapacidade da filosofia de promover esse tipo de riqueza não implica que não haja sentido prático em filosofar. Não valorizamos a riqueza material por si própria - aquela pilha de papel que chamamos de dinheiro não é boa por si mesma -, mas por contribuir para nossa felicidade. Não resta dúvida de que uma das mais importantes fontes de felicidade, ao menos para os que podem apreciá-la, consiste na busca da verdade e na contemplação da realidade; eis aí o objetivo do filósofo. Ademais, aqueles que, em nome de um ideal, não classificaram todos os prazeres como idênticos em seu valor, tendo chegado a experimentar o prazer de filosofar, consideraram essa experiência como superior em qualidade a qualquer outra. Visto que a maior parte dos bens que a indústria produz, excetuando os que suprem nossas necessidades básicas, valem apenas como fontes de prazer, torna-se a filosofia perfeitamente apta, no que se refere à utilidade, para competir com a maioria dos produtos industriais, quando poucos são os que podem dedicar-se, em tempo integral à tarefa de filosofar. Mesmo que entendêssemos a filosofia como fonte de um inocente prazer particularmente válido por si próprio (obviamente, não apenas para os filósofos, mas também para todos aqueles a quem eles ensinam e influenciam), não haveria razão para invejar tão pequeno desperdício da força humana dedicada ao filosofar.
Não esgotamos, porém, tudo o que pode ser dito em favor da filosofia. Pois, à parte qualquer valor que lhe pertença intrinsecamente acima de seus efeitos, a filosofia tem exercido, por mais que ignoremos isso, uma admirável influência indireta até mesmo sobre a vida de gente que nunca ouviu falar nela. Indiretamente, tem sido destilada através de sermões, da literatura, dos jornais e da tradição oral, afetando assim toda a perspectiva geral do mundo. Em grande parte, foi através de sua influência que se fez da religião cristã o que ela é hoje. Devemos originalmente a filósofos idéias que desempenharam papel fundamental para o pensamento em geral, mesmo em seu aspecto popular, como, por exemplo, a concepção de que nenhum homem pode ser tratado apenas como um meio ou a de que o estabelecimento de um governo depende do consentimento dos governados. No âmbito da política, a influência das concepções filosóficas tem sido expressiva. Nesse sentido, a Constituição norte-americana é, em grande parte, uma aplicação das idéias do filósofo John Locke; ela apenas substitui o monarca hereditário por um presidente. Similarmente, admite-se que as idéias de Rousseau tenham sido decisivas para a Revolução Francesa de 1789. É inegável que a influência da filosofia sobre a política pode às vezes ser nefasta: os filósofos alemães do século X1X podem ser parcialmente responsabilizados pelo desenvolvimento de um nacionalismo exacerbado que posteriormente veio a assumir formas bastante deturpadas. Todavia, não resta dúvida de que essa responsabilidade tem sido freqüentemente muito exagerada, sendo difícil determiná-la exatamente, o que se deve ao fato de aqueles filósofos terem sido obscuros. Contudo, se uma filosofia de má qualidade pode exercer influência nefasta sobre a política, com as filosofias de boa qualidade pode ocorrer o contrário. Não há meios de impedir tais influências sendo portanto extremamente oportuno que dediquemos especial atenção à filosofia com o intuito de constatar se concepções que exerceram alguma influência foram mais positivas do que nefastas. 0 mundo teria sido poupado de muitos horrores caso os alemães tivessem sido influenciados por uma filosofia melhor que a dos nazistas. Torna-se, portanto, imperativo abandonar a afirmação de que a filosofia é destituída de valor, mesmo com respeito à riqueza material. Uma boa filosofia, ao influenciar favoravelmente a política, pode gerar uma prosperidade incapaz de ser alcançada sob a égide de uma filosofia inferior. Outrossim, o expressivo desenvolvimento da ciência, com seus conseqüentes benefícios de ordem prática, muito depende de seu background filosófico. Houve mesmo quem tenha chegado a afirmar, a nosso ver exageradamente, que o desenvolvimento da civilização como um todo seria concomitante às mudanças na idéia de causalidade, da concepção mágica de causalidade à científica. De qualquer modo, a idéia de causalidade faz parte do objeto da filosofia. A própria ‘perspectiva científica’, em grande parte, foi introduzida inicialmente pelos filósofos. Todavia, certamente não estaremos nas melhores condições para fazer um estudo proveitoso da filosofia se a encararmos principalmente como uma via indireta de acesso à riqueza material. A principal contribuição da filosofia consiste no intangível background intelectual do qual muito dependem o clima espiritual e a feição geral de uma civilização. Nesse sentido, ocasionalmente se desenvolvem ambições ainda maiores. Whitehead, um dos mais expressivos e acatados pensadores modernos, descreve os dons da filosofia como "a capacidade de ver e de prever, aliada a um sentido do valor da vida, ou seja, o sentido da importância que anima todo esforço civilizado".1 Acrescenta ainda Whitehead que, "quando uma civilização atinge seu auge sem coordená-lo com uma filosofia de vida, difundem-se por toda a comunidade períodos de decadência e monotonia, seguidos pela estagnação de todos os esforços". Para ele, a filosofia consiste em "uma tentativa de esclarecer as crenças que, em última instância, determinam nossa atenção, a qual integra a base de nosso caráter". De um modo ou de outro, podemos ter como certo que o caráter de uma civilização é enormemente influenciado por sua concepção geral da vida e da realidade. Até pouco tempo, para a maioria das pessoas, essa concepção era proporcionada pelo ensino religioso, mas as próprias concepções religiosas foram muito influenciadas pelo pensamento filosófico. Ademais, a experiência demonstra que as concepções religiosas podem conduzir-nos à loucura, a menos que sejam continuamente submetidas a uma avaliação racional. Os que rejeitam qualquer concepção religiosa devem ter o maior interesse em elaborar uma nova concepção para, se possível, substituir a crença religiosa. E fazê-lo significa engajar-se na filosofia.
Embora não passa substituir a filosofia, a ciência suscita problemas filosóficos. Pois ela não pode dizer-nos que lugar ocupam os fatos com que lida no esquema geral das coisas, não conseguindo nem mesmo esclarecer suas relações com os espíritos que os observam. Nem mesmo pode demonstrar, embora deva admitir, a existência do mundo físico ou a legitimidade do uso dos princípios da indução para prever as prováveis ocorrências futuras ou ultrapassar de alguma forma o que tem sido efetivamente observada. Nenhum laboratório científico pode demonstrar em que sentido os homens têm uma alma, se o universo tem ou não um propósito, se, e em que sentido, somos livres, e assim por diante. Não desejamos com isso sugerir que a filosofia possa resolver esses problemas; no entanto, se ela realmente não puder, nada mais poderá fazê-lo, sendo certamente válido tentar descobrir ao menos se tais problemas podem ser solucionados. Veremos, que a própria ciência pressupõe continuamente conceitos que subsumem os domínios da filosofia E, da mesma forma que nenhuma ciência pode florescer se não admitirmos tacitamente uma resposta para certas questões filosóficas, não podemos fazer uso mental adequado da ciência, com o intuito de implementar nosso desenvolvimento intelectual, sem admitirmos uma visão de mundo mais ou menos coerente. Mesmo as melhores conquistas da ciência moderna não teriam sido alcançadas se os cientistas não tivessem adotado determinadas suposições de grandes e originais filósofos, nas quais basearam todo o seu proceder. A concepção "mecanicista" do universo, que caracterizou a ciência durante os últimos três séculos, é derivada principalmente do filosofia de Descartes. Por ter ocasionado maravilhosos resultados, o esquema mecanicista deve ser, em parte, verdadeiro, ainda que parcialmente inadequado, apressando-se o cientista em buscar no filósofo o necessário auxílio para erigir novo esquema que possa substituir o antigo. Um segundo serviço inestimável prestada pela filosofia (especialmente pela "filosofia crítica") reside no hábito, por ela estimulado, de promover-se um julgamento imparcial considerando-se todas as facetas de uma questão, e na idéia que ela oferece do que seja a evidência e de que devemos buscar ou esperar de uma prova. Pode ser esse um importante questionamento das inclinações emocionais e das conclusões precipitadas, sendo especialmente necessário, e com freqüência negligenciado, em controvérsias políticas. Se ambos os lados considerassem suas diferenças políticas munidos de espírito filosófico, seria difícil admitir a eventualidade de uma guerra. O sucesso da democracia depende muito da habilidade dos cidadãos em distinguir um bom de um mau argumento, não se deixando enganar por confusões. A filosofia crítica estabelece um padrão ideal para o raciocínio correto e capacita quem a estuda a remanejar argumentos confusos. Talvez seja esse a motivação pela qual Whitehead afirma, na passagem acima citada, que "nenhuma sociedade democrática poderá alcançar êxito sem que a educação geral que a inspire exprima uma perspectiva filosófica". Na medida em que admitirmos que certa cautela é desejável ao afirmarmos que os homens não deixam de viver de acordo com uma filosofia na qual acreditam, e enquanto atribuirmos a maior parte dos desacertos humanos exatamente à falta desse desejo de sintonia com ideais mais nobres, não poderemos negar a extrema relevância de crenças gerais a respeito da natureza do universo e do bem para a determinação da progresso ou da degeneração da humanidade. Algumas partes da filosofia inegavelmente produzem resultados práticos mais expressivos, mas não devemos por isso incorrer no erro de supor que a aparente inexistência de um suporte de ordem prática para determinado campo de estudo implica que a investigação desse campo seja destituída de sentido prático. Conta-se que um cientista, que costumava jactar-se de desprezar a dimensão prática de toda pesquisa, disse certa vez a respeito de uma: "0 melhor disso tudo é que ela possivelmente não revelará qualquer utilidade prática para quem quer que seja." Todavia, essa linha de pesquisa acabou levando à descoberta da eletricidade. De modo similar, estudos filosóficos por demais acadêmicos e aparentemente destituídos de utilidade prática terminam por exercer profunda influência sobre a visão de mundo, chegando até mesmo a afetar, em última instância, a ética e a religião que adotamos. Pois as diferentes partes da filosofia, os diferentes elementos que compõem nossa visão de mundo, deveriam integrar-se. Tal é pelo menos o objetivo, nem sempre alcançável, de uma boa filosofia. Sendo assim, conceitos à primeira vista muito distanciados de qualquer interesse de ordem prática podem vir a afetar de modo vital outros conceitos que envolvem mais de perto a vida diária. Posso compreender agora o motivo pelo qual a filosofia não precisa recear a questão de ter ou não valor prático. Devo ao mesmo tempo dizer que não aprovo de modo algum uma concepção puramente pragmática da filosofia. A filosofia merece ser valorizada por si própria, e não por seus efeitos indiretos de ordem prática. E a melhor maneira de assegurarmos esses bons efeitos práticos é nos dedicarmos à filosofia pela filosofia. Para encontrar a verdade, precisamos buscá-la desinteressadamente. E o fato de a encontrarmos se revelará muito útil do ponto de vista prático. Não obstante, uma preocupação prematura com seus efeitos práticos só dificultará nossa busca do que é de fato verdadeiro. Muito menos podemos fazer desses efeitos práticos o critério de sua verdade. As crenças são úteis porque são verdadeiras, e não verdadeiras porque são úteis.2


PRINCIPAIS DIVISÕES DA FILOSOFIA


A seguinte classificação é usualmente aceita como uma especificação dos diversos assuntos que compõem a filosofia.
(1) Metafísica.3 Essa disciplina é concebida como o estudo da natureza da realidade em seus aspectos mais gerais, na medida em que podemos fazê-lo. Ela lida com questões do seguinte tipo: De que modo a matéria se relaciona com o espírito? Qual dos dois é anterior? São os homens livres? 0 que chamamos de eu (self) é uma substância ou apenas uma seqüência de experiências? É o universo infinito? Deus existe? Até que ponto o universo é uma unidade ou uma diversidade? Até que ponto um sistema é racional?
(2) Recentemente, a filosofia crítica tem sido freqüentemente contraposta à metafísica (que nesse caso é às vezes denominada filosofia especulativa). A filosofia crítica consiste na análise e na crítica dos conceitos pertencentes ao senso comum e às ciências. As ciências pressupõem certos conceitos que não são suscetíveis de investigação por meio de métodos científicos, de modo que passam a integrar o âmbito da filosofia. Nesse sentido, todas as ciências, com exceção da matemática, pressupõem de alguma forma a concepção de lei natural; cabe à filosofia, e não a qualquer das ciências particulares, examinar tal concepção. De modo similar, pressupomos, em nossos diálogos mais comuns e menos filosóficos, conceitos fortemente imbuídos de problemas filosóficos, como matéria, espírito, causa, substância e número. Uma importante tarefa da filosofia consiste exatamente em analisar conceitos desse tipo, precisar o que significam e determinar em que medida sua aplicação ao estilo do senso comum pode ser justificada. A parte da filosofia crítica que trata da investigação da natureza e dos critérios de verdade, assim como da maneira pela qual obtemos conhecimento, é chamada de epistemologia (teoria do conhecimento). Questões específicas desse campo são, entre outras, as seguintes: Como podemos definir a verdade? Qual a distinção entre conhecimento e crença? Podemos estar certos daquilo que sabemos'? Quais as funções relativas do raciocínio, da intuição e da experiência sensorial?
No presente trabalho, iremos ocupar-nos desses dois ramos da filosofia , como constituindo sua parte filosófica mais fundamental e característica. Apontaremos ainda algumas disciplinas suplementares, que possuem certa afinidade com a filosofia na acepção que lhe atribuímos neste livro, embora dela sejam distintas na medida em que são dotadas de relativa autonomia.

FILOSOFIA E DISCIPLINAS AFINS


(1) É difícil separar a lógica da epistemologia. Mesmo assim, ela é normalmente considerada uma disciplina autônoma. Trata-se de um estudo dos diferentes tipos de proposições e de suas relações que justificam uma inferência. Certas partes da lógica revelam acentuada afinidade com a matemática; outras poderiam igualmente ser classificadas como pertencentes à epistemologia.
(2) A ética ou filosofia moral lida com os valores e a problemática do "dever". Ela formula questões como; Qual o bem supremo? Qual a definição de bem? A retidão de um ato depende unicamente de suas conseqüências? Nossos juízos sobre nossos próprios deveres são subjetivos ou objetivos? Qual a função de um ato punitivo? Qual a razão última pela qual não devemos mentir?
(3) A filosofia política consiste na aplicação da filosofia (da ética principalmente) a questões relacionadas com os indivíduos enquanto organizados sob a égide de um Estado. Ela investiga questões do seguinte tipo: Um indivíduo possui direitos que contrariam os interesses do Estado? Há no Estado algo mais além dos indivíduos que o constituem? É a democracia a melhor forma de governo?
(4) A estética consiste na aplicação da filosofia ao exame da arte e da noção de beleza. É típico da estética formular questões do seguinte tipo: A beleza é objetiva ou subjetiva? Qual é a função da arte? Para que aspectos de nossa natureza apelam as diversas formas de beleza?
(5) 0 termo mais geral - teoria do valor - é às vezes utilizado de modo a abranger o estudo dos valores considerados em si mesmos, embora esse ramo possa ser incluído na ética ou na filosofia moral. De qualquer modo, é sempre possível entendermos a noção de valor como uma concepção geral cujas espécies e aplicações particulares são desenvolvidas pelas disciplinas apresentadas nos itens (2), (3) e (4).


A TENTATIVA DE EXCLUIR A METAFISICA EM FACE DA OBJEÇAO DE QUE MESMO A FILOSOFIA CRI'TICA A PRESSUPÕEDiversas tentativas, algumas das quais discutiremos posteriormente, foram feitas no sentido de excluir a metafísica como injustificável e confinar a filosofia à sua versão crítica e às cinco áreas afins que mencionamos, na medida em que podem ser consideradas uma abordagem ou um estudo crítico dos conceitos da ciência e da vida prática. Tal concepção foi ocasionalmente expressa pela afirmação de que a filosofia consiste, ou deve consistir, na análise das proposições do senso comum. É óbvio que tal afirmação, quando se pretende exclusiva, chega a ser exagerada. Pois, (1) mesmo que uma metafísica legítima e positiva não seja possível, haverá certamente um campo de estudos que se ocupe da refutação dos argumentos falaciosos que supostamente conduziriam a conclusões metafísicas; e tal campo faria obviamente parte da filosofia. (2) A menos que as proposições do senso comum sejam inteiramente falsas, sua análise deverá fornecer-nos uma explicação geral daquela parcela da realidade à qual se referem as proposições, ou seja, proporcionar, de algum modo, parte da explicação geral do real que a metafísica busca oferecer. Nesse sentido, poderíamos dizer que, se existir, o espírito - obviamente ele existe em certo sentido - podemos obter uma metafísica do espírito a partir da análise das proposições do senso comum relativas a nós mesmos, na medida em que tais proposições são verdadeiras - de fato, seria difícil admitir que todas as nossas proposições do senso comum acerca dos seres humanos possam ser de todo falsas. Talvez não seja essa uma metafísica altamente elaborada e de grande alcance, mas de qualquer modo envolverá genuínas proposições metafísicas. Mesmo se afirmarmos que tudo que conhecemos é apenas aparência, a aparência implica uma realidade que aparece e um espírito para o qual ela aparece, e como estes não podem também ser apenas aparências, estaremos ainda admitindo alguma metafísica. Até mesmo behaviorismo é uma metafísica. Não desejamos com isso afirmar a possibilidade atual ou mesmo futura de ,ama metafísica, no sentido de um sistema elaborado que nos propicie grande dose de informação sobre a estrutura geral da realidade e as coisas que mais desejamos conhecer. Isso só pode ser feito ambulando, tentando-se estabelecer e criticar as proposições metafísicas em questão. Não obstante, por mais que sejamos apaixonadamente metafísicos, não passaremos sem a filosofia crítica. A mera tentativa de dispensá-la acarretará a produção de uma metafísica deplorável. Pois, mesmo na metafísica, devemos partir dos conceitos do senso comum e das ciências, já que não dispomos de outros. Ademais, se nossos fundamentos são seguros, devemos cuidadosamente analisá-los e examiná-los. Dessa forma, não podemos separar totalmente a filosofia crítica da metafísica, o que não impede um filósofo de atribuir muito maior importância a um desses elementos.


A FILOSOFIA E AS CIÊNCIAS ESPECIAIS


A filosofia difere das ciências especiais com respeito a (1) sua maior generalidade e (2) a seu método. Ela investiga os conceitos que são supostos simultaneamente por inúmeras ciências diferentes, além das questões que não se situam no âmbito das ciências. A ciência compartilha com o senso comum os conceitos que demandam essa investigação filosófica, mas as descobertas de uma ciência particular suscitam ou intensificam alguns problemas especiais, como, por exemplo, n da ``relatividade", que exigem um tratamento filosófico por não poderem ser discutidos adequadamente pela ciência em questão. Alguns pensadores, como Herbert Spencer, conceberam essencialmente a filosofia como uma síntese dos resultados das ciências, mas hoje em dia os filósofos, em geral, não adotam essa concepção. Sem dúvida, se podemos obter resultados filosóficos através de processos de síntese e generalização a partir das descobertas científicas, isso deveria ser feito. Não obstante, o único modo de sabermos se podemos ou não fazê-lo é tentar, e nesse ponto a filosofia não tem alcançado muito progresso nem se revelado muito proveitosa. As grandes filosofias do passado consistiram parcialmente numa investigação dos conceitos fundamentais do pensamento, em tentativas de estabelecer fatos alegadamente distintos daqueles com os quais lidava a ciência mediante métodos bastante diferentes dos científicos. Elas comumente foram influenciadas, mais do que parece, pelo estado contemporâneo da ciência, mas, sem dúvida, seria muito enganador descrevê-las essencialmente como uma síntese dos resultados da ciência. Mesmo filósofos antimetafísicos, como Hume, estiveram mais voltados para os pressupostos da ciência do que para seus resultados.
Tampouco devemos admitir sem reservas, como uma verdade da filosofa, o resultado ou suposição científica válido em sua própria esfera. Sabemos, por exemplo, que a física contemporânea parece ter mostrado que o tempo da física é inseparável do espaço, o que de modo algum nos autoriza a renunciar esse resultado como um princípio filosófico pelo qual o tempo pressuporia o espaço. Pois, pode ocorrer que o resultado em questão seja verdadeiro apenas com relação ao tempo da física, e isso apenas porque o tempo da física é medido em termos de espaço. Por conseguinte, não precisa ser verdadeiro com relação ao tempo da nossa experiência, do qual o tempo da física é uma abstração ou construção. A ciência pode progredir por meio de ficções metodológicas usando termos num sentido invulgar que a filosofia tem de corrigir. 0 termo filosofia da ciência é usualmente aplicado ao ramo da lógica que lida de maneira especializada com os métodos das diversas ciências.

O MÉTODO DA FILOSOFIA COMPARADO AO MÉTODO CIENTÍFICO


Com respeito a seus métodos, a filosofia difere fundamentalmente das ciências especiais. A não ser quando se aplica a matemática, todas as ciências utilizam processos de generalização empírica, mas a filosofia reserva a tal método um lugar muito modesto. Por outro lado, a tentativa de assimilar a filosofia à matemática, embora muito freqüente, não tem sido bem-sucedida (exceto em determinados ramos da lógica que, pela própria natureza, têm mais afinidade com a matemática do que com os demais setores da filosofia). Particularmente, parece humanamente impossível que os filósofos possam alcançar a certeza e a clareza que caracterizam a matemática. Essa diferença entre os dois campos de estudo pode ser atribuída a várias causas. Em primeiro lugar, não se tem mostrado possível determinar, em filosofia, o significado dos termos do mesmo modo inequívoco que em matemática. Assim sendo, seu significado pode mudar de forma quase imperceptível ao longo de uma argumentação, sendo muito difícil nos certificarmos de que diferentes filósofos utilizam a mesma palavra com o mesmo sentido. Em segundo lugar, somente na matemática encontramos conceitos simples formando a base de inúmeras inferências complexas e, todavia, rigorosamente válidas. Em terceiro lugar, a matemática pura é hipotética, ou seja, não nos pode dizer o que se passa no mundo real, como, por exemplo, o número de coisas situadas num dado lugar, mas apenas o que ocorrerá se isso for verdade, como, por exemplo, que encontraríamos 12 cadeiras numa sala caso lá houvesse 5 + 7 cadeiras. A filosofia, contudo, objetiva ser categórica, isto é, dizer-nos o que de fato ocorre; conseqüentemente, em filosofia, não é apropriado, como geralmente se faz em matemática, fazer deduções apenas a partir de postulados ou definições. Desse modo, é impossível encontrar uma analogia adequada entre os métodos da filosofia e os de qualquer outra ciência. É igualmente impossível definir de modo preciso qual é o método da filosofia, a não ser limitando de forma grotesca o seu objeto. A filosofia não emprega um método único, mas uma variedade de métodos que diferem de acordo com o objeto ao qual são aplicados. E a tentativa de defini-los de maneira independente de sua aplicação carece de qualquer propósito útil. De fato, isso é muito perigoso. Ne passado, ela freqüentemente conduziu a uma limitação equivocada do escopo da filosofia, excluindo tudo aquilo que não se sujeitasse ao controle de determinado método escolhido como caracteristicamente filosófico. A filosofia requer grande variedade de métodos, pois deve abranger em sua interpretação todo tipo de experiência humana. Não obstante, ela está longe de ser meramente empírica, pois, tanto quanto possível, tem a tarefa de apresentar uma imagem coerente dessas experiências e a partir delas inferir o que pode ser inferido de uma realidade distinta da experiência humana. No que se refere à teoria do conhecimento, deve a filosofia submeter a uma crítica construtiva todas as modalidades de pensamento; contudo, devemos reservar um lugar nessa visão para qualquer modo de pensar que se nos apresente como autojustificado no que há de melhor em nossas reflexões comuns, e não filosóficas, e não rejeitá-lo por diferir dos outros. Os critérios filosóficos são, em linhas gerais, a coerência e a abrangência; o filósofo deve visar a apresentação de uma visão coerente e sistemática da experiência humana e do mundo, tão esclarecedora quanto o permita a natureza dos casos investigados, mas não deve buscar coerência à custa de rejeitar aquilo que de direito é conhecimento real ou crença justificada. Uma séria objeção a uma filosofia consiste na acusação de que ela sustenta algo em que não podemos acreditar na vida cotidiana. Essa objeção poderia ser feita a uma filosofia que logicamente conduzisse, como algumas, à conclusão de que não há um mundo físico, ou de que todas as nossas crenças, científicas ou éticas, carecem de qualquer justificação.

FILOSOFIA E PSICOLOGIA 


Há uma ciência que mantém uma relação bastante peculiar com a filosofia: a psicologia. Na prática, é muito mais provável que as teorias psicológicas particulares venham a exercer influência sobre um argumento filosófico ou, uma teoria a respeito do bem e do mal do que as teorias particulares de uma ciência física também válida a relação inversa: exceto com relação às partes que se aproximam da fisiologia, a psicologia, mais do que qualquer setor particular da física, corre o risco de sofrer as conseqüências adversas oriundas de um equívoco de ordem filosófica. É provável que isso aconteça devido ao fato de que apenas recentemente a psicologia emergiu como ciência especial, ao contrário do que ocorreu com as ciências físicas, que há muito já haviam alcançado posição estável, dispondo de bastante tempo para esclarecer seus conceitos básicos de acordo com seus próprios objetivos. Há uma geração, a psicologia era comumente ensinada por filósofos, sendo muito difícil considerá-la uma ciência natural. Por conseguinte, não teve tempo para completar o processo de esclarecimento de seus conceitos fundamentais, necessário para torná-los, se não filosoficamente inquestionáveis, suficientemente claros e úteis para a prática da ciência em questão. 0 estado contemporâneo da física sugere-nos que, quando uma ciência atinge um estágio mais avançado, tende a se deparar mais uma vez com problemas filosóficos. Poderíamos então afirmar que o período no qual uma ciência é independente da filosofia não coincide com seu florescimento ou com os estágios mais avançados de sua trajetória, mas com a longa fase que separa esses dois extremos. Nesse sentido, a filosofia pode contribuir de algum modo para a pendente reconstrução da física.

CETICISMO


Os filósofos têm-se preocupado muito com uma criatura bastante estranha: o cético absoluto. Não obstante, tal pessoa não existe. Se existisse, refutá-lo seria impossível. Similarmente, ele não nos poderia refutar ou afirmar alguma coisa, nem mesmo seu ceticismo, sem contradizer a si mesmo, pois a afirmação de que nenhuma espécie de conhecimento ou crença pode ser justificada é uma crença. Em contrapartida, também não poderíamos provar que o cético está errado, na medida em que toda prova deve admitir algo, ainda que seja alguma premissa, e também as leis da lógica. Se o princípio da não-contradição não é verdadeiro, não podemos refutar algum mediante o argumento de esse alguém está caindo em contradição. Um filósofo não pode, portanto, partir ex nihilo e provar tudo: ele é forçado a fazer certas suposições. Em particular, tem de admitir a verdade das leis fundamentais da lógica, pois de outro modo não seria possível utilizar argumentos de qualquer espécie ou mesmo formular quaisquer enunciados significativos. Entre essas leis da lógica, assinalamos duas que são muito importantes: trata-se dos princípios da não-contradição e do terceiro excluído. Quando aplicados a proposições, o primeiro afirma que uma proposição não pode ser ao mesmo tempo verdadeira e falsa, enquanto o segundo afirma que toda proposição deve ser verdadeira ou falsa. Quando os aplicamos a coisas, o primeiro afirma que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo ou ter e não ter uma qualidade ao mesmo tempo, e o segundo, que uma coisa é ou não é e possui ou não uma qualidade. Concordamos em que esses princípios não soam de modo a entusiasmar ninguém, mas o fato é que todo nosso conhecimento e todo nosso pensamento dependem deles. Se a afirmação de algo não excluísse sua própria contradição, nenhum significado poderia ser atribuído a qualquer asserção e ninguém poderia jamais ser contestado, na medida em que tanto a asserção quanto a refutação poderiam ser corretas. Não podemos negar que, em certos casos, pode ser equivocado atribuir ou não a algo uma qualidade. Seria incorreto dizer que certas pessoas são ou não calvas, não só devido à ausência de uma definição precisa do que seja "calvo" mas também porque, na prática, "calvo" e "não-calvo" significam extremos entre os quais reside uma classe intermediária de casos em que não deveríamos aplicar um desses termos, e sim "parcialmente calvo" ou "mais ou menos calvo".Não se trata, portanto, de uma pessoa possuir ou não uma qualidade definida. Todas as pessoas são dotadas de um grau particular de calvície, embora o uso dos termos "calvo" e "não-calvo" não deixe claro a que graus de calvície desejamos referir-nos. Tenho a impressão de que as objeções ocasionalmente feitas ao princípio do terceiro excluído se escoimam em desentendimentos desse tipo. De modo similar, o princípio da não-contradição é perfeitamente compatível com o fato de um homem ser bom com relação a certo aspecto e mau com relação a outro, ou mesmo com relação ao mesmo aspecto, ser bom num momento e mau em outro. A filosofia deve também aceitar a evidência da experiência imediata , embora essa atitude não nos leve tão longe quanto poderíamos esperar. Não dispomos normalmente de experiência imediata sobre outros espíritos, a não ser o nosso, sendo provável que a evidência da experiência imediata não possa dizer-nos que os objetos físicos que parecemos experienciar existem independentemente de nós mesmos. Tornaremos oportunamente a abordar essa questão. Logo constatamos que, não obstante, deveremos fazer novas suposições, se quisermos admitir que conhecemos certas coisas a respeito das quais a vida cotidiana não oferece qualquer suporte para que possamos achar que as conhecemos realmente. Todavia, não devemos concluir que a impossibilidade de se justificar uma crença do senso comum mediante um argumento implica necessariamente sua falsidade. Pode ser que, no nível do senso comum, possuamos um conhecimento genuíno ou uma crença justificada que seja por si próprio estabelecido e que dispense uma justificação filosófica. Não cabe ao filósofo, nesse caso, provar a verdade da crença, pois isso pode ser impossível, mas dar-lhe a melhor explicação possível, examinando acuradamente aquilo que ela envolve, Se usarmos a expressão "crença instintiva" para denominar aquele tipo de crença que tomamos como evidentemente verdadeira antes de qualquer crítica filosófica, e que continua a parecer evidentemente verdadeira em nossa vida cotidiana após a crítica filosófica e a despeito dela, podemos afirmar com Bertrand Russell - que não pode certamente ser acusado de credulidade demasiada - que a única razão para rejeitar uma crença instintiva é o fato de ela colidir com outras crenças instintivas, sendo um dos principais objetivos da filosofia produzir um sistema coerente baseado em nossas crenças instintivas, corrigindo-as o menos possível e só para preservar sua coerência. Nesse sentido, já que a teoria do conhecimento só pode basear-se num estudo das coisas reais que conhecemos e da maneira pela qual as conhecemos, podemos afirmar que o fato de uma teoria filosófica em particular levar à conclusão de que não podemos conhecer certas coisas que evidentemente conhecemos, ou que não podemos justificar certas crenças que obviamente são justificadas, é mais uma objeção à teoria filosófica em questão que ao conhecimento ou às crenças que ela questiona. Por outro lado, seria tolice supor que todas as crenças do senso comum devem ser verdadeiras da maneira como se nos apresentam. Talvez seja função da filosofia aperfeiçoá-las, mas não descartá-las, ou alterá-las de modo a torná-las irreconhecíveis.

FILOSOFIA E SABEDORIA PRÁTICA


A filosofia está associada tanto ao saber teórico quanto à sabedoria prática, à qual aludimos através de expressões do tipo "considerar filosoficamente as coisas". De fato, o sucesso da filosofia teórica não nos oferece qualquer garantia de que seremos filósofos no sentido prático ou de que agiremos e sentiremos de modo correto sempre que nos envolvermos em determinadas situações práticas. Uma das doutrinas favoritas de Sócrates é a de que sempre podemos fazer o bem desde que saibamos o que é o bem; não obstante, isso só é verdade se acrescentamos ao significado do termo "saber" uma adequada nitidez emocional daquilo que sabemos do ponto de vista teórico. 0 fato de sabermos (ou acreditarmos) que fazer algo que desejamos iria acarretar muito mais sofrimento a uma outra pessoa - o Sr. A - do que prazer para nós mesmos, sendo, em conseqüência, não-recomendável, não nos impede, todavia, de praticar tal ação, pois a idéia de causar sofrimento ao Sr. A poderia parecer-nos menos repugnante que a de perdermos aquilo que cobiçamos. Na medida em que é inteiramente impossível a qualquer ser humano sentir o sofrimento alheio com a mesma intensidade que os seus, ocorre sempre a possibilidade de sermos tentados a abandonar nossos deveres, fazendo-se necessário não apenas o conhecimento, mas também o exercício da vontade. Nem somos constituídos de modo a ser sempre fácil, quando somos abandonados à nossa própria moral, nos opormos a um forte desejo, ainda que disso dependa nossa própria felicidade. A filosofia não é garantia de nossa conduta correta ou do perfeito ajustamento de nossas emoções às nossas crenças filosóficas. Nem mesmo do ponto de vista cognitivo é ela capaz de nos dizer o que devemos fazer. Para isso, precisamos, além de princípios filosóficos, não só do conhecimento empírico dos fatos relevantes e da capacidade de prever as prováveis conseqüências, mas também de um insight da situação particular, de maneira a podermos aplicar adequadamente nossos princípios. Obviamente, não é minha intenção afirmar que a filosofia não contribui para vivermos uma vida exemplar, mas apenas que não pode por si só levar-nos a viver de modo exemplar nem decidir o que seja esse tipo de vida. Insisto, entretanto, em que ela pode, a esse respeito, pelo menos proporcionar valiosas sugestões. E teria muito mais a dizer sobre a conexão entre filosofia e vida exemplar, se incluísse neste livro uma discussão especial da ética, disciplina filosófica que trata do bem e da ação correta. Não obstante, devemos fazer uma distinção entre filosofia teórica, enquanto explicação do que é, e ética filosófica, enquanto explicação do bem e da ação correta.
Não pretendo, ao recorrer a essa ilustração, dar a impressão de ser um hedonista, ou uma pessoa convencida de que o prazer e a dor sejam os únicos fatores relevantes para que se possa julgar uma ação boa ou má. Não sou assim. A metafísica ou a filosofia crítica nos é de pouca valia para decidirmos o que devemos fazer. Pode levar-nos a conclusões que facilitem encararmos as adversidades de maneira mais serena, mas isso depende da filosofa, não havendo infelizmente acordo universal entre os filósofos quanto à possibilidade de uma concepção otimista do mundo ser justificada filosoficamente. No entanto, devemos seguir a verdade aonde quer que ela nos leve, já que nosso espírito, uma vez desperto, não pode apoiar-se no que carece de justificativa, pois o pensamento não pode ser uma falsidade. Ao mesmo tempo, devemos estudar atentamente e não recusar-nos a ouvir as alegações dos que pensam ter alcançado, mediante recursos que não podem ser incluídos nas categorias usuais do senso comum, verdades inspiradoras e reconfortantes a respeito da realidade. Não devemos tomar como certo que as pretensões de uma cognição genuína em matéria de experiência místico-religiosa, com relação a um diferente aspecto da realidade, devam ser necessariamente descartadas coma carentes de justificativa apenas por não se ajustarem a um materialismo sugerido, mas de modo algum provado e, agora, nem mesmo sustentado pela ciência moderna.


Continuaremos a iniciação a Filosofia na próxima inspiração.... beijos a todos



Notas


1 Whitehead, A. N., Adventures of Ideas, pg. 125.
2 Nossa crítica à atitude "pragmatista" encontra-se nas pgs. 53-4 e 63-4 adiante.
3 Esse termo tem origem no fato de ter sido discutido na obra de Aristóteles que foi colocada após (meta) seu trabalho sobre a física.


Bibliografia
Whitehead, A. C.: The Function of Reason, Princeton: Princeton University Press.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Desabafo!


Já segurei nas mãos de alguém por medo, já tive tanto medo, ao ponto de nem sentir minhas mãos. 
Já expulsei pessoas que amava de minha vida, já me arrependi por isso. 
Já passei noites chorando até pegar no sono, já fui dormir tão feliz, ao ponto de nem conseguir fechar os olhos.
Já acreditei em amores perfeitos, já descobri que eles não existem.
Já amei pessoas que me decepcionaram, já decepcionei pessoas que me amaram.
Já passei horas na frente do espelho tentando descobrir quem sou, já tive tanta certeza de mim, ao ponto de querer sumir.
Já menti e me arrependi depois, já falei a verdade e também me arrependi.
Já fingi não dar importância às pessoas que amava, para mais tarde chorar quieta em meu canto.
Já sorri chorando lágrimas de tristeza, já chorei de tanto rir.
Já acreditei em pessoas que não valiam a pena, já deixei de acreditar nas que realmente valiam.
Já tive crises de riso quando não podia.
Já quebrei pratos, copos e vasos, de raiva.
Já senti muita falta de alguém, mas nunca lhe disse.
Já gritei quando deveria calar, já calei quando deveria gritar.
Muitas vezes deixei de falar o que penso para agradar uns, outras vezes falei o que não pensava para magoar outros.
Já fingi ser o que não sou para agradar uns, já fingi ser o que não sou para desagradar outros.
Já contei piadas e mais piadas sem graça, apenas para ver um amigo feliz.
Já inventei histórias com final feliz para dar esperança a quem precisava.
Já sonhei demais, ao ponto de confundir com a realidade... Já tive medo do escuro, hoje no escuro "me acho, me agacho, fico ali".
Já cai inúmeras vezes achando que não iria me reerguer, já me reergui inúmeras vezes achando que não cairia mais.
Já liguei para quem não queria apenas para não ligar para quem realmente queria.
Já corri atrás de um carro, por ele levar embora, quem eu amava.
Já chamei pela mamãe no meio da noite fugindo de um pesadelo. Mas ela não apareceu e foi um pesadelo maior ainda.
Já chamei pessoas próximas de "amigo" e descobri que não eram... Algumas pessoas nunca precisei chamar de nada e sempre foram e serão especiais para mim.
Não me dêem fórmulas certas, porque eu não espero acertar sempre.
Não me mostre o que esperam de mim, porque vou seguir meu coração!
Não me façam ser o que não sou, não me convidem a ser igual, porque sinceramente sou diferente!
Não sei amar pela metade, não sei viver de mentiras, não sei voar com os pés no chão.
Sou sempre eu mesma, mas com certeza não serei a mesma pra SEMPRE! 
Gosto dos venenos mais lentos, das bebidas mais amargas, das drogas mais poderosas, das idéias mais insanas, dos pensamentos mais complexos, dos sentimentos mais fortes.
Tenho um apetite voraz e os delírios mais loucos. 
Você pode até me empurrar de um penhasco q eu vou dizer: 
- E daí? EU ADORO VOAR!


Clarice Lispector

quarta-feira, 14 de março de 2012

Afinal, No Que Acredito?


Eu não tenho dúvidas sobre a existência de Deus. Porém, também não tenho dúvidas de que pessoas podem muito bem utilizar o nome de Deus para realizar fraudes sérias.

Pessoas mal intencionadas já fizeram isso antes. Eu e você sabemos disso.

Pessoas bem intencionadas, porém ingênuas, também erram: acreditam muitas vezes em evidências de que elas tenham alguma influência espiritual “mágica” para servir outras pessoas.

Sabe… Poderes ocultos, que são “impossíveis de serem ensinados”.

A Fé Que Advém da Ignorância

É bem verdade que uma parte das pessoas que acredita em paranormalidade, inclusive muitas das “especialistas no assunto”, têm uma compreensão muito básica, senão nula, de estatística matemática, psicologia ou comunicação.

Por isso mentem para si mesmas, sem terem a menor idéia de que estão mentindo. Crêem ter um “poder” que não possuem, e conseguem convencer outras pessoas igualmente ingênuas do mesmo.

Educação é a única coisa que pode curar essa deficiência na sociedade. E eu sou um advogado da clareza.

A Favor do Poder Para Cada Ser Humano No Planeta

James Randi é um dos maiores “combatedores” de fraudes psíquicas e paranormalismo no planeta. Veja este vídeo e aprenda. Ele tem legendas em Português.

Eu entendo que cuido aqui de um site chamado “Espalhe o Amor”, e que isso pode ser percebido como uma afronta a muitos leitores que podem ter sua fé invalidada por este discurso de James Randi, e também pelas minhas próprias palavras.

No entanto, Randi não nega a existência de Deus. Ele apenas desafia pessoas incapazes de provar as habilidades que acreditam e dizem ter.

Essa é uma diferença fundamental.

Afinal, No Que Acredito?

Acredito que um amor de potencial extraordinário pode ser encontrado na clareza dos pensamentos. Acredito que Deus está onde existe liberdade de escolhas, questionamentos e compreensão científica.

Diferente do que muitos espiritualistas pensam, a Ciência não está “contra” Deus. Isso aí é um tipo de espiritualismo bem pobre, datado da Idade Média, que precisa ser atualizado.

É o mesmo espiritualismo que jogou pessoas vivas, jovens, inocentes e cheias de energia em fogueiras, e que continua bem ativo até hoje, motivando o terrorismo e extorsão em massa dos pobres que não têm sequer o que comer.

Eu juro que quero que alguém me prove o contrário sobre o ocultismo, assim como Randi também quer, assim como qualquer pessoa esclarecida quer

Afinal, se o Paranormal existe, então ele faz parte do universo, e portanto é regido por leis naturais, acessíveis a qualquer pessoa que tenha um cérebro pensante.

Se você tem uma mente plenamente funcional, então é do seu direito compreender como o mundo realmente funciona.

Onde Está a Humildade?

Os falsos espiritualistas:

Não gostam de ser desmentidos
São extremamente autoritários
São orgulhosos sobre aquilo que acreditam
Não admitem perguntas que colocam em questão suas certezas
São ciumentos sobre a influência que conquistaram
Crêem que as outras pessoas são crianças incapazes de pensar por si próprias. Mas que eles mesmos podem.
Os verdadeiros espiritualistas, na minha experiência, sente-se perfeitamente seguros ao pedirem provas de que eles estão errados, para que possam corrigir seus pensamentos e sua conduta em uma direção mais iluminada.

Essa é a diferença.

Na minha opinião, humildade é admitir que você pode, sim, estar equivocado – e pedir humilde e gentilmente que alguém lhe demonstre como.

Nós estamos no Século XXI. Deus, se existe, também está na Ciência. Afinal, Ele é onisciente ou não?

Conecte-se a Deus Com Uma “Fé Prática”

Muitas das pessoas que usam seu tempo com misticismos e badulaques estão comprando apenas o direito de se sentirem psicologicamente confiantes e seguras, e não um aparato verdadeiramente sobrenatural.

A parte mais valiosa de qualquer doutrina religiosa é a sabedoria dos autores. Não os “troços” com promessa de poderes invisíveis.

Ainda assim, mesmo as palavras dos autores precisam, sim, de questionamento.

O direito de nos sentirmos psicologicamente bem é de TODOS. O nome desse outro esquema que andam comprando por aí é PLACEBO.

Muitas dessas pessoas jamais conseguirão o que querem em suas vidas, por mais que tenham toda fé no mundo, porque simplesmente deixam de agir no que é necessário para realizar rituais primitivos.

O fato é que Deus nos deu pouco tempo para viver. Não vai dar tempo de fazer o que precisa ser feito e ainda por cima cumprir com obrigações ditas “divinas”.

Adore-o fazendo de sua própria vida um exemplo. Corra na direção dos seus sonhos, e realize-se. Não se prostre na frente de ninguém, porque este não é o melhor uso que você pode fazer do tremendo poder que Deus lhe deu através do seu próprio cérebro, que pode encontrar suas próprias soluções em louvor a Ele.

quarta-feira, 7 de março de 2012

INTIMIDADE


Algumas pessoas se destacam para nós. Não há argumento capaz de nos fazer entender exatamente como isso acontece. Porquê dançam conosco com mais leveza nessa coreografia bela, e tantas vezes atrapalhada, dos encontros humanos. Muitas vezes tentamos explicar, em vão, a medida do nosso bem-querer. A doçura de que é feito o olhar que lhes dirigimos. O sentimento que nos move para ajudá-las a despertar um único sorriso.


Não importa quando as encontramos no nosso caminho. Parece que estão na nossa vida desde sempre e que mesmo depois dela permanecerão conosco. É tão rico compartilhar a jornada com elas que nos surpreende lembrar de que houve um tempo em que ainda não sabíamos que existiam. É até possível que tenhamos sentido saudade mesmo antes de conhecê-las. O que sentimos vibra além dos papéis, das afinidades, da roupa de gente que usam. Transcende a forma. Remete à essência. Toca o que a gente não vê. O que não passa. O que é.


Por elas nos sentimos capazes das belezas mais inéditas. Se estão felizes, é como se a festa fosse nossa. Se estão em perigo, o aperto é nosso também. Com elas, o coração da gente descansa. Nós nos sentimos em casa, descalços, vestidos de nós mesmos. O afeto flui com facilidade rara. Somos aceitos, amados, bem-vindos, quando o tempo é de sol e quando o tempo é de chuva. Na expressão das nossas virtudes e na revelação das nossas limitações. Com elas, experimentamos mais nitidamente a dádiva da troca nesse longo caminho de aprendizado do amor. 

O centésimo macaco


Há uma história que
que eu gostaria de lhe contar.
Sua mensagem
pode conter
a sua única esperança
de um futuro
para a nossa espécie!
É a história
do centésimo macaco:
O macaco japonês
Macaca fuscata
vem sendo observado
há mais de trinta anos
em estado natural.
Em 1952,
os cientistas jogaram
batatas-doces cruas
nas praias da ilha de Kochima
para os macacos.
Eles apreciaram o sabor
das batatas-doces,
mas acharam desagradável
o da areia.

Uma fêmea de um ano e meio,
chamada Imo,
descobriu que lavar as batatas
num rio próximo
resolvia o problema.
E ensinou o truque
à sua mãe.
Seus companheiros
também aprenderam a novidade
e a ensinaram às respectivas mães.
Aos olhos dos cientistas,
essa inovação cultural
foi gradualmente assimilada
por vários macacos.
Entre 1952 e 1958,
todos os macacos jovens
aprenderam a lavar
a areia das batatas-doces
para torná-las mais gostosas.
Só os adultos
que imitaram os filhos
aprenderam esse avanço social.
Outros adultos
continuaram comendo
batata-doce com areia.
Foi então que aconteceu uma coisa surpreendente.
No outono de 1958,
na ilha de Kochima,
alguns macacos – não se sabe ao certo quantos –
lavavam suas batatas-doces.
Vamos supor
que, um dia, ao nascer do sol,
noventa e nove macacos
da ilha de Kochima
já tivessem aprendido
a lavar as batatas-doces.
Vamos continuar supondo
que, ainda nessa manhã,
um centésimo macaco
também tivesse feito uso dessa prática.
ENTÃO ACONTECEU!
Nessa tarde,
quase todo o bando
já lavava as batatas-doces
antes de comer.
O acréscimo da energia
desse centésimo macaco
rompeu, de alguma forma,
uma barreira ideológica!
Mas veja só:
Os cientistas observaram
uma coisa deveras surpreendente:
o hábito de lavar
as batatas-doces
havia atravessado o mar.
Bandos de macacos
de outras ilhas,
além dos grupos
do continente, em Takasakiyama,
também começaram
a lavar suas batatas-doces!
Assim, quando um certo número crítico
atinge a consciência,
essa nova consciência
pode ser comunicada
de uma mente a outra.
O número exato pode variar,
Mas o Fenômeno do Centésimo Macaco
significa que, quando
só um número limitado de pessoas
conhece um caminho novo,
ele permanece
como patrimônio da consciência
dessas pessoas.
Mas há um ponto em que,
se mais uma pessoa
se sintoniza com a nova percepção,
o campo se alarga,
de modo que essa percepção
é captada por quase todos!
Extraído do Livro: “O Centésimo Macaco – O Despertar da Consciência Ecológica”
Autor: Ken Keyes, Jr
Editora Pensamento